Kurai Zensho - Espada das Folhas Secas

Parte I - Kanso Haken

Província de Hanei, Ilha Tenmei, Arquipélago de Kozakura; Kara-Tur
Nascia Kurai, única filha de Josei Zensho e sua amada esposa, Kenja Zensho; os cabelos ruivos de Kurai pareciam refletir a luz do Sol que resvalava entre as folhas secas do Jardim de Mokuzai. Ter herdado os cabelos da mãe, um traço tão raro não só no arquipélago de Kozakura quanto em toda Kara-Tur, fez com que a garota fosse crida sacra, e honrada pelo templo Kenmeina Mokuzai como uma presente concedido ao casal e à pequena província pela própria deusa Bijin¹.

Sob aquele signo, a família Zensho foi rapidamente elevada socialmente, ao ponto de se tornar uma das Meimon² do Daimyo³ Yanushi Tekina. Kurai e o filho do Daimyo, Miryoku Tekina, tinham a mesma idade, e uma amizade inocente e natural surgiu entre eles. Yanushi não via maldade, e estimulava aquela amizade. Com frequência Kurai era convidada para participar dos jantares em família promovidos pelo Daimyo, e quando as principais Meimon eram chamadas para os grandes jantares festivos promovidos por Yanushi, o assento da garota de cabelos de fogo era na mesa da família de Miryoku, não junto de sua própria família. Em certo sentido, eles cresceram como irmãos, uma amizade inocente e imaculada.

Mas Akui Tekina, mãe de Miryoku e amada esposa de Yanushi, não via aquela amizade com tanta clareza, e vislumbrava perigo, onde perigo algum havia. Ela julgou que a garota estava se envolvendo em demasia com seu filho. Ora, Kurai podia ser Meimon e enviada de Bijin, mas a família Zensho não tinha amplas posses, nem qualquer influência ou província que pudessem aumentar as chances de Miryoku quando, no futuro, ele fosse concorrer a um cargo mais elevado na hierarquia política. O que o garoto precisava era de poder, amor podia ser semeado.

Dessa forma, Akui resolveu intervir. Sendo uma mulher sábia e de uma habilidade política ímpar, ela sabia que tentar separar a garota do filho poderia acabar por aumentar o sentimento entre os dois. Aproximou-se da garota, com agrados e palavras doces, tornando-se sua confidente. Demonstrou a ela as belas artes do Koto⁴, que acabaram fascinando a garota. Certificou-se de que ela ingressasse em uma das melhores escolas do instrumento da região, onde diversas garotas aprendiam outras artes, e aguns garotos treinavam o Taiko⁵, de forma que, pela primeira vez, o convívio da garota era repleto de garotos. Ora, Kurai era bela, e certamente diversos garotos se interessariam por ela. Miryoku poderia ter seu charme, mas não era um homem que vivia cercado de mulheres, sua beleza tinha mais a ver com carisma e imponência do que com beleza física propriamente dita.

O plano de Akui, entretanto, acabou se virando contra ela. Ver Kurai rodeada de garotos fez com que o jovem Miryoku descobrisse seus sentimentos pela garota, plantando nele a semente do ciúme. Akui não havia ajudado o marido a alcançar sua posição política, entretanto, sem muita politicagem e mudança de planos. Rapidamente adequou seus planos às novas circunstâncias. Quando estava sozinha com a jovem Bijin no Sosshin⁶, ouvindo seu progresso no Koto, deixou que a garota percebesse que estava triste.

--Nani ga okusama, ki ni naru?

Spoiler:

Aquela frase, dita na suave voz de uma garota que se preocupa com alguém por quem tem grande carinho, seria a frase que mudaria para sempre a vida de Kurai. Akui inicialmente disse a ela que ela não entenderia, era jovem demais para entender os ofícios do amor. Após muita insistência da garota (que Akui sabia que ocorreria), disse a ela, em voz triste, que Miryoku a amava. Aquilo despertou um sentimento novo na garota. Mas o sentimento foi rapidamente podado quando a mãe do futuro-daimyo a avisou que aquilo era uma pena, pois ainda que ela própria torcesse pelo amor dos dois, pois nada era mais importante para ela do que ver o filho feliz, se aquele amor acontecesse, isso iria querer dizer que Miryoku teria que abandonar seus sonhos de ser um Daimyo. Aquela ideia destruiu os sentimentos de Kurai.

Com o tempo, a garota percebeu o quanto amava o jovem também, mas, com a ideia de que o amor deles era destrutivo, decidiu que se não poderia passar a vida ao lado dele como esposa, encontraria outra maneira de fazê-lo. Durante os anos que se seguiram, no início de sua adolescência, Kurai aprendeu o caminho do Bushido⁷, e treinou com armas. A garota jamais poderia ser um samurai, primeiro porque eles não aceitavam mulheres, e segundo porque somente membros das Meimon do Imperador podiam ascender à casta dos samurai. Mas sua baixa estatura e estrutura física propiciavam o manejo das espadas rápidas. Dessa forma, aprendeu a manusear a katana⁸ e a Wakizashi⁹, e solicitou o posto de Hogo-sha Seijin¹⁰.

Akui acreditou que o problema estaria resolvido, pois a honra de uma Hogo-sha a impediria de ter qualquer relação íntima com Miryoku. Os outros dois Hogo-sha do Daimyo eram Seinaru Yari, um lanceiro habilidoso que contava suas vinte e poucas primaveras, e que acabou se tornando um bom amgio de Kurai; e Kenmeina Ken, um espadachim que já contava com mais de cinquenta primaveras, conselheiro espiritual do Daimyo. Durante o começo da atuação de Kurai como Hogo-sha, tudo corria bem. Com o passar do tempo, entretanto, Kurai e Miryoku se reaproximaram e, acobertados por Seinaru, começaram a viver um pequeno romance proibido.

E então, meses depois, Yanushi faleceu. Akui, ainda que enlutada, sabia que Miryoku teria que ascender ao cargo de Daimyo, e já havia descoberto, por meio de Kenmeina, que o jovem Daimyo e sua Hogo-sha estavam tendo um caso. Ambos tinham dezesseis primaveras àquela época, e aquilo preocupava muito Akui. A senhora providenciou para que ambos fossem flagrados, e então publicamente acusou Kurai de ter planejado o assassinato do rei para que seu amado pudesse subir ao poder. A jovem veementemente negou, mas a palavra da viúva valia mais do que a sua, e a garota sabia que se deixasse que aquela acusação se prolongasse, isso acabaria prejudicando Miryoku. Seu amor pelo garoto a impediu, e ela acabou aceitando a punição por um crime que não cometeu.

Foi presa, e teria sido condenada à morte, mas Seinaru a resgatou da prisão, por confiar na honra da garota. Ele a estimulou a fugir e a direcionou para onde. Se ela conseguisse fugir para Oeste, a floresta de Soru no Mori a encobriria, e ela conseguiria chegar à Rota Dourada, de onde poderia se juntar a uma caravana e alcançar os misteriosos reinos do Oeste. Foi o que ela fez, mas havia um pequeno empecílio que mesmo Seinaru e Miryoku desconheciam:

Kurai estava grávida.


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NOTAS
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¹ - Nome pelo qual Sune, deusa da beleza, é conhecida na região de Kara-Tur - literalmente, "Bela Dama".
² - As "Nobres Famílias"; casas que eram próximas e compartilhavam honras com os regentes provincianos, Daimyos.
³ - Os Senhores provincianos, regentes locais que concorrem ao poder, seja na posição de Kanrei -regentes regionais- ou de Shogun -regente nacional que responde ao imperador- quando há uma troca de famílias no poder ou quando um imperador morre sem deixar sucessor.
⁴ - Instrumento de corda típico oriental

Spoiler:

⁵ - Tambor oriental

Spoiler:

⁶ - Enviada de Sune
⁷ - Código de honra oriental. Tipicamente associado aos samurais, o bushido permeia todo tipo de combatente que siga os princípios tradicionais da região.
⁸ - Espada Bastarda oriental. A Katana é uma arma puramente ofensiva, com pouca ou nenhuma área para defesa, como a espada é feita para ser leve e possuir um fio muito aguçado, sua estrutura é mais frágil do que as espadas ocidentais, mas usada em mãos treinadas, pode ser muito mais letal.
⁹ - Espada Curta oriental. A Wakizashi é normalmente usada para defesa, sendo uma espada mais robusta e rija do que a Katana. Muitos dos grandes samurais utilizavam a Wakizashi praticamente como um escudo.
¹⁰ - A Guarda Real do Daimyo. Sua tradução seria "Santo Guardião", por serem guardiões que abrem mão de sua própria vida em prol daquele que protegem.

Parte 2 - Mujo to Tamashi

Soru no Mori, Ilha Tenmei, Arquipélago de Kozakura; Kara-Tur
A garota caída no chão, empapada de suor, abraçava a própria barriga como se sua vida dependesse disso. Nada em seu treinamento de Hogo-sha ou em suas dezessete primaveras de vida a preparara para aquela agonia. Àquela altura, ela já havia notado a gravidez, e seu corpo começava a cobrar as taxas de uma gestação. Agregado a isso, a garota não conseguia se alimentar durante algum tempo, comendo frutas e vegetais sem a vaga ideia de que eles poderiam ser tóxicos ou venenosos. De algumas semanas para lá, havia sido acometida por uma febre incessante. Tentava forçar seus passos, mas seus pés já pouco aguentavam. Forçou-se a continuar a seguir adiante, tinha que continuar. Em determinado momento, as árvores da floresta pareceram mudar, se tornar mais verdes, mas ela já não conseguia notar isso, seu corpo estava quase sendo derrotado pela febre. Recostou-se a uma árvore um pouco maior que as demais, e então, pouca memória houve do que lhe aconteceu.

Sua visão começou a turvar, mas algo entrou em seu campo de visão. Depois um longo respiro negro, e três belas mulheres estavam diante de si, mas elas pareciam diferentes... Agora a escuridão a engolia, e ela se via em uma estrutura de madeira, numa cama; tentou levantar, vendo as costas de uma das estranhas mulheres, e então novamente apagou. Agora começava a recobrar a visão. Sentia algo úmido em seu rosto. Ergueu a mão para tocá-lo e sentiu um pano úmido em sua testa. Removeu-o com uma mão e abriu os olhos, e parecia que um pesado martelo havia atingido sua cabeça. Tentou sentar-se, mas sua barriga havia crescido desde que desmaiara, o que indicava que algum tempo havia se passado. Uma senhora encostou a mão em seu ombro e a forçou novamente a se deitar. Disse algo em um idioma estranho que não conseguia entender, mas a garota percebeu que a senhora parecia estar cuidando dela, então acabou cedendo. Mergulhou na escuridão novamente, mas, dessa vez, era apenas um sono profundo e sem sonhos.

Casa de Ylimielinen, Algum lugar do semi-plano de Mata das Fadas, Faerûn
--Sinun täytyy puristaa levyn käsiinsä.

Spoiler:

Ylimielinen era uma senhora, ou ao menos era a imagem que vestia. Sabia que para as fadas, as aparências eram tão mutáveis quanto a roupa do corpo, mas Ylimielinen se apresentava como uma velha e bondosa senhora. Bondosa ela de fato era, e uma professora paciente. Kurai ainda conseguia pronunciar apenas algumas poucas palavras no idioma feérico, mas as mímicas ajudavam muito. As diversas ninfas da região ajudavam a garota a cuidar do rebento recém-nascido, a quem havia dado o nome de Kyofu. Ylimielinen agora a ensinava a achar seu sustento na floresta, a se alimentar de frutas e folhas, a saber quais plantas eram comestíveis e quais não. "Kaikki kasvit ovat syötäviä. Jotkut vain kerran." a fada lhe dissera, certa vez. "Todas as plantas são comestíveis. Algumas apenas uma vez".

Com o passar dos meses, Kurai foi aprendendo o idioma feérico, e chegou até a conseguir ensinar algumas das fadas o Kozakuran, idioma local do arquipélago de onde viera. Ela agora sabia como sobreviver nas matas sem precisar de ajuda, mas o tempo a foi lembrando de tudo o que passara em Kozakura, e a alegria deu lugar à tristeza. A tristeza, por sua vez, deu lugar à raiva. Kurai voltou a treinar com a espada, o que muito preocupava Ylimielinen e as Ninfas que lá viviam. Com o tempo, ela começou a caçar. Primeiro pequenos animais, depois maiores. Até um dia em que matou os sagrados gamos que por lá viviam. Em concílio, as fadas decidiram que ela era muito perigosa para ficar na Mata das Fadas, e usaram suas magias para fazer com que ela se perdesse. Quando Kurai notou o que acontecera, era tarde demais. Havia cruzado o limiar do semi-plano, e percebeu que as fadas haviam fechado o caminho atrás de si. Mas elas fizeram pior do que isso...

Elas haviam tomado seu filho!

Parte 3 - Kage no Horosha

Lua Alta, Vale da Batalha, Terra dos Vales
Muitos elfos haviam naquela terra, mas ela era diferente deles. Muitos humanos por ali andavam, mas mesmo deles ela era diferente. Seus traços claramente mostravam que ela não era daquela região, ou de nenhuma das regiões comuns dos frequentadores daqueles vales. Seus cabelos, vermelhos como o fogo, a tornavam ainda mais diferente, e as espadas que carregava, mais ainda. Mas o que mais a distinguia eram seus olhos. Olhos determinados, ainda que furiosos. Negros, como as profundezas de um oceano onde a paz reside apenas como algo temporário entre as sanguinárias batalhas dos monstros que lá habitam. Desde que aparecera naqueles vales, a garota vivia em frequente peregrinação. Buscava encontrar novo portal para a terra das fadas. Buscava seu filho.

Sua busca, entretanto, vinha se mostrando frívola e fútil, até então. A garota Kurai era de poucas palavras e sorrisos ainda mais escassos, mas havia feito questão de aprender o idioma local. Não sabia a quanto tempo estava ali, nem se importava.

Por hora, só uma coisa importava: sua busca, seu objetivo, seu filho!